domingo, 18 de dezembro de 2016

Para envergar a toga é preciso coragem, e o cargo só não basta!


Lá se vão alguns anos desde que ingressei na Magistratura como juiz substituto e fui premiado com o plantão de carnaval da capital, com menos de dois meses de exercício da profissão.
Seria um plantão sem compensação ou indenização. Fazia parte da carreira que abracei, e fui firme e forte, juiz calouro, e calhou de trabalhar com uma oficial de justiça também nova.
Como todo castigo pra recruta é pouco, peguei uma gripe terrível e passei o plantão com febre alta e um rolo de papel higiênico ao lado.
Todo plantão tem uma história a ser contada, mas nesse houve uma em especial que vale ser lembrada nesses tempos em que ordens judiciais são ignoradas por políticos e ameaça-se aprovar uma lei que punirá juízes que decidirem fora do padrão imposto pelos próprios processados por essas leis. É o réu legislando a seu favor e chamando o juiz de abusado.
Logo no início do feriado, por volta das onze horas da noite, chega um mandado de segurança contra o diretor de um plano de saúde local, impetrado pelo Ministério Público, em favor de um bebê que precisava de atendimento urgente, sob risco de morte, e o plano se negava a atender dizendo que ainda estaria no prazo de carência, quando não estava.
Quem atua na área sabe que a medida proposta seria inadequada, a princípio. Mas eu estava diante de um caso nítido de direito violado de um bebê que corria o risco de morrer, filho de pais humildes, porque se tivessem dinheiro não teriam procurado o Ministério Público, e sim um advogado.
Qual meu dever como juiz? Garantir direitos. E foi o que fiz, interpretando a lei para além da letra fria e deferindo o atendimento imediato da criança.
Isso com o equipamento completo do plantonista gripado: computador, impressora, papel higiênico, antigripal e a oficial de justiça descansando no sofá, porque já passava da meia noite.
Entregue a decisão, saiu a oficial para cumprimento e eu para a cama. Uns instantes depois, toca meu telefone: “Doutor, não tem nada aberto para receber a ordem”. Bom, chamei a oficial de volta e fomos nós procurar no Google algum lugar para intimar o tal plano. Achamos. Lá foi a oficial de novo para a missão de coruja e eu para o repouso.
Daqui a pouco, o telefone toca de novo. “Doutor, achei o lugar, está aberto, mas eles falaram que não vão receber nada”.
Tá. Uma hora e alguma coisa da manhã, um bebê preso à vida por um fino fio, seus pais insones, e diziam que a intimação só seria recebida em dias úteis e horário comercial.
A oficial esperando uma resposta. Respirei fundo: “A senhora me faz um favor? Avisa aí que a senhora vai perguntar mais uma vez se ninguém vai receber a ordem judicial. Se não, informa que vamos chamar um caminhão se for preciso, mas vamos prender todos em flagrante. Se tiver necessidade, me chama que eu vou até aí”.
Desisti de tentar descansar e fiquei esperando. Coisa de vinte minutos depois meu telefone volta a tocar: “Doutor, ligaram para uma responsável aqui e ela falou que a ordem vai ser cumprida, mas que só vai receber amanhã a intimação”.
Ué, mas eu estava acordado, a oficial estava acordada, os pais da criança estavam acordados. “Não pode ser assim”, disse, “só vale o que está nos autos. Pode ir intimar, a senhora tem meu respaldo e eu assumo toda responsabilidade”. A corajosa oficial, que sempre contará com a minha admiração, foi e intimou. Se cara feia e praga matassem, nem ela, nem eu, estaríamos aqui hoje.
A ordem foi cumprida, o bebê internado e, soube depois, sobreviveu, graças à intervenção médica imediata.
Se estivessem em vigor as normas da Câmara e do Senado sobre abuso de autoridade que querem fazer passar, seria eu um criminoso. Ousei interpretar a lei, não a segui no sentido literal, “inventei” algo novo e não obedeci ao que os legisladores e os tribunais superiores dizem que é a Justiça. Ameacei de prender quem se recusou a cumprir uma ordem judicial, imagine!
E o juiz faz isso porque gosta? Porque de repente baixa ali o complexo de Batman? Ou então ele resolve favorecer uma das partes, afinal, era um bebê?
O fato de ser um bebê em risco de morte revelava a urgência, mas, antes disso, havia ali um direito subjacente que não estava sendo cumprido. O papel do juiz é analisar se aquilo que é pedido é devido, e, reconhecendo este direito, tem o dever de colocar todos os mecanismos legais para efetivá-lo, sejam quais forem. E isso independe da condição da pessoa, de sua sexualidade, de sua etnia ou se fala “seje menas”.
Só que para que sua análise seja correta ele precisa interpretar a lei, que é próprio da atividade do judicante, e não cotejá-la como se fosse uma máquina. Somente a alma humana é capaz de analisar as nuances de um caso e buscar a justiça do caso, apesar da falibilidade humana.
E é aí que reside o medo do corrupto, do poderoso, do ditador: que o juiz rompa os laços da letra fria das leis que eles criam para manter o estado de coisas que os favorece e passe a interpretá-la, acabando com seus privilégios e sua impunidade. Napoleão, aquele ditador, não queria permitir que os juízes interpretassem as leis, porque isso seria diminuir o seu poder de dizer como os outros deveriam agir.
Evidente, se o legislador quer controlar todo o país dizendo quais são as regras que todo mundo deve seguir, sua primeira preocupação será calar a boca dos juízes, que podem interpretar a lei fora do que a corrupção espera.
Num momento em que as ordens judiciais são descumpridas por grandes próceres da República, que passam a escolher apenas aquelas que lhes são convenientes, é que se torna necessária a coragem dos juízes e a força da democracia em demonstrar que todos são iguais.
No primeiro grau os juízes estão fazendo a lei acontecer: ex-governadores estão sendo presos, mesmo fazendo um espetáculo, ex-deputados também. Grandes figuras, detentoras de poder político e econômico, mas sem foro privilegiado, estão conhecendo a realidade do cárcere por suas condutas e tendo bens bloqueados.
Enquanto isso, nove anos depois a primeira denúncia contra um senador é aceita no Supremo Tribunal Federal, e outras tantas esperam no escaninho dos dias o momento em que serão lidas e aceitas ou não, se já não estiverem prescritas.
Eu sou juiz de primeiro grau, não sou ministro. Por isso fiquei acordado madrugada adentro, e ainda fico, para garantir que se cumpra a lei seja, mesmo com risco do meu cargo, e nisso trabalho junto com assessores, escreventes, oficiais de justiça e policiais. E eu não ficarei calado enquanto valores como vida, liberdade e dignidade são violados, mesmo sob ameaça, e nisso repito a conduta da maioria acachapante dos outros juízes.
A depender das próximas leis que um Congresso sem legitimidade quer aprovar, dizendo que o juiz que faz seu trabalho comete abuso de autoridade, eu também serei um criminoso.
E isso me assusta menos do que ser covarde.
Eduardo Perez Oliveira 
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Goiás

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